Através

A poesia que derrama

da ponta de meus dedos

não tem truques

nem segredos

 

A poesia me atravessa

que poeta é ser

intangível

 

A poesia espreita sobre a pele

e sob a pele se entranha

transita em átomos, moléculas

e sai num sopro

incontinente como o respirar

de um afogado

 

A poesia independe

tem seu próprio juízo

e marcha resoluta

para onde bem quer

e não serei eu a reles poeta

a ousar indicar seu fim

 

A poesia escreve a si mesma

apesar e através de mim.

Entre pela Janela

Ah! Se você soubesse o que eu poetizo,

se eu pudesse compartilhar contigo

o assombro,

o júbilo

e essa sinergia impensável

das palavras que giram

em volta de mim.

 

Mas talvez elas não venham

para me ajudar a contar

o tanto que me enlouquecem

quando somem, fugidias,

para depois retornar

e pousar espontaneamente

em seu devido lugar.

 

Ah! Se você soubesse das noites,

se eu pudesse te mostrar o tanto

que transborda de dentro de mim,

e se você não tivesse medo

e deixasse jorrar de você

as histórias tristes e

os sonhos elegantes e anacrônicos

e as ideias tão delicadas

vestidas de português antigo,

ah! Eu convidava você

para poetizar junto comigo.

Corpo

Veículo estranho

esse que pilotamos.

Adequado ou inábil

para nossos propósitos,

o invólucro nos define

mais do que precisamos.

 

Nosso rastro no mundo

vai deixando poesia

concreta.

 

Nossa materialidade

converte intenções diáfanas

em pedra.

 

A lâmpada contém o gênio

que nunca realizou desejos.

Os frascos ocultam fragrâncias

que prefeririam evaporar.

Todo o mundo é um cárcere

desprovido de grades

ou de fugas possíveis

para algum outro lugar.

 

Veículo bravo

que conduz pelo mundo

nosso ancestral peso.

 

Felicidade

é estar bem instalado

dentro de si mesmo.

Tempo

Não me impressiona sua alma de velho

Que idades são números

E números são tão mais jovens

Que o tempo

Não me causa espécie seu par de olheiras

Fiéis companheiras

De seu olhar profundo

E questionador e confuso e atento

Não me diz nada seu corpo cansado

Constantemente mergulhado

Na dureza do mundo

Nem a exaustão que habita nele

 

Não me dizem nada seus cabelos brancos

Contam o que o tempo fez com você

E não o que você fez com ele.

Utopia

Escuta o que eu digo

Entende minhas palavras

Ama-me como eu sou

 

Olha mais de perto

Aprende a abrir os braços

Nada está sob controle

 

Bendita a voz que grita

pedidos impossíveis

e erige pedra por pedra

seu castelo de utopias

 

Desejos perfuram concreto

afetos derrubam tijolos

mãos nuas põem muros abaixo

desde sempre.

Ela

Ela, com suas ideias erradas,

com cabelo e sapatos errados,

com todo um corpo muito errado,

com pernas e sorrisos equivocados,

abertos demais ou de menos.

 

Ela, posta sob holofotes,

não se sabe se de circo,

de prisão ou de altar.

Sumariamente julgada

por tudo que tem de aparente

 

Ela, que cura as próprias feridas,

estanca o sangue que não cessa,

ela que anda por aí sozinha,

com medo, sem medo, enfrenta.

Em frente

 

Ela é mulher, e de mulher o grito

sacode o pó da mansidão silente.

 

Ela é mulher, e o seu clamor aflito

ainda persegue alguma voz potente.

 

Ser mulher é o exercício infinito

de nunca ser suficiente.

Existence

It takes some time, girl,

for you to become

a person.

 

At first you’re just hair and hips

swinging around.

At first you’re just smile and lipstick

and perfume and

your silhouette.

 

Then you speak

and you’re smart

and your ideas take over the room.

Then you’re compassionate

and you’re wise.

Then you’re the friend, the funny,

not just the blonde

the girl

the hottie

anymore.

 

Once your magnificent soul

spreads out into the world

you become a person

and you can never go back

to what you used to be.

 

It is uncanny that

your existence incarnates

when they get to transcend

the sight of your flesh.

 

A person’s existence

lies way beyond

what can be seen.